“É preciso ter esperança, mas ter esperança do verbo esperançar; porque tem gente que tem esperança do verbo esperar. E esperança do verbo esperar não é esperança, é espera.
Esperançar é se levantar, esperançar é ir atrás, esperançar é construir, esperançar é não desistir! Esperançar é levar adiante, esperançar é juntar-se com outros para fazer de outro modo…” (Paulo Freire).
TEMPOS INCERTOS
Na metade de 2019, passei por tempos incertos.
Um tempo vivido no desencanto, em desalento e descrença no ser humano. A tristeza me levava a lugares sombrios da minha existência, uma “bad trip”! Sentia-me desconectada da minha energia de vida.
Numa manhã, fazendo uma caminhada na Vila Madalena, passei na frente de uma casa/loja que nunca havia visto antes.
Entrei. Algo me atraía para aquele espaço. Fotos de mulheres e crianças africanas me chamaram atenção.
Uma simpática e sorridente mulher se aproximou de mim, Camila. Pergunto sobre a proposta da loja e qual era relação do espaço com a África.
Fico sabendo que a “Casa Reviva” era o ponto de venda de pequenos artesãos que juntos contribuíam na arrecadação de fundos que ajudava comunidades carentes no Brasil e na África.
Isso era uma quinta-feira do mês de agosto de 2019. Camila me contou da expedição de voluntários que sairia para Moçambique dali dois meses.
Fiquei tomada pelas histórias que ouvi e senti que deveria ir para lá com eles. Não conseguia parar de pensar no que ouvi e uma luz se acendia dentro de mim!
REVIVENDO
Chegando em casa, não conseguia me conter de tanta alegria. Tinha que contar o que tinha visto na Casa Reviva e a urgente necessidade de me juntar ao grupo para ir a Moçambique.
Meu marido e meus filhos me escutaram e me apoiaram imediatamente em minha decisão: iria me juntar ao grupo e ser voluntária na expedição África Reviva 2019.
Esperança chegou para esperançar!
TEMPOS DE MUDANÇA
Essa viagem me levaria para muitos lugares inesperados, fora e dentro de mim mesma.
Em tempos de mudança e de transição, a instabilidade é natural. Não é fácil para ninguém adquirir novos hábitos em tão pouco tempo. Sair do que nos é conhecido e não saber para onde estamos indo não é nada fácil.
Esses são tempos confusos e vários sentimentos chegam até nós. Nos sentimos muitas vezes desencantados, em desalento, inseguros, medrosos, angustiados e ansiosos.
Gostaríamos de voltar no tempo, que as coisas fossem como antes, mas também já sabemos que isso não funciona mais.
BAGAGENS
A aeromoça faz o seu aviso final antes da aterrissagem: “cuidado ao abrir os compartimentos de bagagem, os objetos podem ter se deslocado durante a viagem!”
Toda viagem já começa quando estamos preparando a nossa bagagem. Sempre fui o tipo de pessoa que tinha que levar tudo e mais alguma coisa nas malas. E se eu precisar de algo e não tiver trazido?
As bagagens já são os símbolos do que não podemos abandonar.
O desejo de algum tipo de permanência está inscrito no que carregamos.
Aí se revela nossa relação com o que nos dá segurança, alguma confiança, o território protegido.
E depois, quando aterrissamos, literalmente ou simbolicamente, não prestamos atenção. Esquecemos que assim que colocamos nossas coisas em algum bagageiro, muitas delas não estarão no mesmo lugar quando chegarmos.
Com o passar dos anos, fui percebendo que era desnecessário levar tantas coisas, afinal, muito pouco do tudo que levei eu realmente precisei.
Aí já começa uma importante lição. A viagem fica mais leve!
Mas… quanto tempo leva para percebermos o que saiu de lugar? Quanto tempo leva para nos desapegarmos do que não é necessário e, assim, deixarmos nossa bagagem mais leve?
ARRUMANDO AS MALAS
Em um mês, agilizei a minha vida por aqui e decidi que levaria os livros dos meus filhos que guardava desde a infância.
Arrecadei outras doações que me comprometi a levar e mais doações em dinheiro que me ajudariam a pagar o excesso de peso das bagagens.
Sempre pensei em doar os livros ou iniciar uma pequena biblioteca em algum lugar em que crianças não tivessem acesso a livros.
Senti que havia chegado a hora. Os livros iriam para seu verdadeiro destino!
Para meus filhos, já adultos, seria especial ver os livros de sua infância e adolescência irem para quem realmente necessitava.
Não seria fácil levá-los. A companhia aérea não tem cotas extras para ONGs. Teríamos que levar os livros em nossas bagagens, assim como todas as outras doações necessárias para o trabalho que iríamos realizar por lá. Mas como eu havia conseguido doações em dinheiro significativas para o envio de bagagem extra, deu tudo certo.
Com as bagagens organizadas, tudo resolvido, certo?
Acho que não. Afinal, sempre levamos muitas outras bagagens que pouco pensamos se terá utilidade para onde vamos.
DESAPEGOS, MOTIVAÇÕES E INTENÇÕES
Em um primeiro momento, parece que pouco importa o que continua ou sai do lugar em nossas bagagens.
Com o tempo, fui percebendo que a motivação e a intenção das minhas viagens eram outras, diferentes das quais pareciam ser inicialmente.
Fiquei mais atenta e mais consciente. Percebi que, em minhas viagens, sempre procuro ir para lugares que me levam para experiências diferentes do meu imaginário e dos meus afetos conhecidos.
Viagens assim cumprem um roteiro existencial, em o que já é conhecido não tem lugar para se refugiar.
É poder ir além do que já foi experimentado, de crenças, hábitos, preconceitos e julgamentos. Desapegos necessários para viver o novo!
Ter acesso a outras pessoas e culturas e poder se abrir para recebê-las é uma preciosidade.
Numa nova jornada, sempre temos que nos desfazer do velho e estar abertos aos forasteiros que nos levam para outros lugares, ainda perto de nós mesmos.
Abrir espaços para os outros, para o novo, para o inesperado que, ao final, nada mais é do que o reflexo de quem somos naquele momento.
Continua no próximo mês…