Meditação e Arte: um caminho para expansão da consciência – Por: Sylvia Sóglia
“A arte é um instrumento importante para a reconexão com os sentidos e com a ampliação deles.” (Ayrson Heráclito)
O corpo físico é o início, instrumento fundamental para as experiências que vivemos na vida, ainda que seja uma matéria bastante desconhecida. Ele também é uma ferramenta na nossa busca assumida por transformações tanto emocionais quanto espirituais e, nisso, o artista performático e muitos yogues se aproximam.
De que maneira? Acredito que ambos empurram seus corpos para além dos próprios limites. Sejam eles limites do corpo físico ou vividos por meio de emoções, como a dor, a exaustão, o medo, o perigo. Nada muito diferente do que muitos de nós fazemos em nossas experiências cotidianas, inúmeras vezes de forma inconsciente.
E é justamente neste encontro – entre a meditação e a arte – que quero me aprofundar. Para isso, voltemos no tempo. Mais especificamente para 2015, ano em que a artista Marina Abramović realizou a exposição “Terra Comunal + *MAI “, no Sesc Pompéia. Na ocasião, fomos presenteados com uma retrospectiva de 40 anos de seu trabalho. Naquela exposição, também foi aplicada, pela primeira vez, uma experiência criada por Marina, chamada Método Abramović.
Quem teve o privilégio de estar lá, deve se lembrar da experiência especial que foi participar do Método. Marina, com uma inquietação que é tão característica da sua trajetória artística, ofereceu uma vivência delicada, que nos permitiu desfrutar da intensidade do momento presente, numa quietude que é rara nesses tempos agitados em que vivemos.
E o que fomos convidados a viver? Abramović desenvolveu uma série de objetos, chamados de transitórios, para que o público pudesse interagir, como cadeiras, bancos, travesseiros feitos de madeira e cristais. Cada um com suas propriedades energéticas específicas.
Vale pontuar que fomos orientados a deixar nossos pertences em um armário, não podendo entrar com nada no espaço interativo e que realizamos as experiências usando fones de ouvido, o que nos isolou dos sons externos por, aproximadamente, duas horas.
As experiências foram divididas em:
Caminhada Lenta – A caminhada lenta foi um exercício proposto para encontrar a imobilidade através do movimento. Enquanto caminhávamos lentamente, não apenas abrandávamos o corpo, a respiração e os pensamentos, mas todo o espaço ao nosso redor. Assim, foi possível estar atento a cada ação, como dar um simples passo, por exemplo: erguer o pé, movê-lo adiante, pousá-lo no chão e transferir o peso. Neste exercício, não havia linha de chegada. Ficamos à vontade para fazer uma ação que realizamos todos os dias, sem pensar em destino.
Ficar em pé – Neste exercício, atravessamos uma plataforma de madeira, que continha uma torre feita de cristais. Em seguida, permanecemos em pé, parados, indo ao encontro destes cristais, localizados em três pontos energéticos muito importantes: cabeça, plexo solar e os órgãos sexuais. Ficamos, então, envolvidos no ato simples de permanecer em pé e em silêncio.
Deitar-se – Tal vivência nos convidava a acolher a estranha sensação de não fazer nada, deitados em camas feitas de madeira e cristais. Podia-se descansar ou dormir, mas o exercício abordava, essencialmente, o ato de dar-se a permissão de não fazer coisa alguma.
Sentar-se – Sentados em cadeiras de madeiras e cristais, permanecíamos imóveis, experimentando o silêncio e a quietude. Este exercício trouxe a intenção de foco e calma em um ato cotidiano.
Segundo Lynsey Peisinger, artista parceira de Marina, em um mundo repleto de distrações constantes, encontrar um tempo para nos conectarmos conosco e com os outros se torna cada vez mais difícil. Por isso, o Método dá a oportunidade para ficarmos em silêncio e ligados ao momento presente, abrindo novos espaços para nossa consciência.
Reverberações e Encontros
Participar do Método, vivenciar aquelas experiências artísticas foi uma forma de meditação, que aos poucos foi ampliando a percepção dos meus sentidos. Eu não era mais a mesma…o corpo imóvel, o tempo presente e o silêncio tornaram-se testemunhos da vida que pode ser bem mais simples do que imaginamos.
Por acompanhar e gostar muito dos trabalhos de performance da Marina, tenho pensado em como os meus trabalhos de artes plásticas (colagens), sons (tigelas tibetanas e taças de som) e a meditação têm processos semelhantes aos da arte performática dela.
Sinto que há uma conexão!
Agora, ao ler sua biografia “Pelas Paredes, memórias de Marina Abramović” e relembrar a minha participação no Método, percebo que ela me inspira em minha busca pessoal e profissional por descobertas… por encontrar novos caminhos de expansão da consciência e também formas de proporcionar vivências similares a outras pessoas.
O Tempo Presente
Outra exposição da artista, em 2010, também explorou, de maneira emblemática, esta minha questão. Em sua retrospectiva no Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMa), Marina realizou uma performance (The artist is present) em que permaneceu sentada em uma cadeira, imóvel e em silêncio. Os visitantes eram convidados a sentar-se em frente à artista e a olhar para ela, sem limite de tempo.
Abramović fez o convite: “Eu realmente quero que você esteja aqui e agora. Permita que sua própria respiração o ajude. Quero que fiquem sem se mover, imóveis, controlando a respiração e observando-a. Dessa forma, vocês podem experimentar algo completamente diferente. Suas mentes começarão a funcionar de um modo totalmente distinto.
“Presença.
Estar presente, por longas extensões de tempo,
Até que a presença se eleve e decline, do material ao imaterial, da
forma ao informe, do instrumental ao mental, do tempo ao atemporal.” (Agamben)
O artista da performance, assim como yogues, meditadores, xamãs, terapeutas e outros artistas, trabalham com o tempo. O tempo é um formatador e alterador da consciência. O tempo desafia todas as formas.
Marina nos diz: “Não há tempo na presença”.
No “aqui e agora”, quando paramos para criar e/ou meditar, nossos sentidos se abrem, um espaço potencial surge e proporciona uma ampliação da nossa consciência.
“Camadas de percepção vão se abrindo sob a pressão do tempo. Existimos no tempo. Quando a percepção do tempo se transforma, também nos transformamos”. (Maikon K)
Enquanto o corpo está em uma ação performática, imóvel como na meditação, é a respiração que nos conecta com camadas mais amplas de percepção do momento presente, podendo nos levar a estados profundos de consciência ampliada.
Essa compreensão da presença, que se aprofunda no tempo em uma ação duradoura, mobiliza uma energia intensa. Sem dúvida, a ação é um meio de cavar estados de percepção desconhecidos….O mundo não é uma ideia, é sensação. E a sensação é a inteligência do corpo. Com o corpo se tece novos hologramas de realidade.
A energia que vem do artista ou da pessoa que medita circula em rede, há uma comunicação que se estabelece com outras pessoas e consigo. Uma comunicação que tem a força de transformar pessoas, situações e ambientes.
É na imobilidade, no silêncio e na presença que novas percepções surgem do nosso mais profundo self e se expandem para o mundo ao nosso redor.
Assim, tanto o performer quanto a pessoa que medita, deve:
- Entender o silêncio;
- Criar um espaço de silêncio para adentrar a própria obra, seu próprio self;
- Perceber que o silêncio é como uma ilha em meio a um oceano turbulento.
De acordo com Abramović, é no silêncio e na imobilidade que se pode criar um campo relacional entre corpos, produzindo um estado luminoso de ser um indivíduo. E é justamente tal vivência compartilhada que podemos experienciar na exposição “Terra Comunal”, que já carrega no próprio título a sua razão de ser, um momento em que pudemos, juntos, acompanhar os passos da artista e a criar um espaço compartilhado, comum a todos.
E, a meu ver, toda a vivência fez com que cada participante pudesse experimentar o que é estar em um estado meditativo. Caminhar lentamente, deitar, sentar, ficar em pé, pensar ou não pensar puderam se tornar atos transformadores.
Em duas horas, cada pessoa pôde se permitir um vasto tempo de experiências nessas ações de imobilidade e quietude, além da habilidade para estar consigo. E, assim como eu, quem pôde honrar tal compromisso e permanecer concentrado e introspectivo por este período, na simplicidade de tais ações, teve a oportunidade de experimentar a clareza e a conexão que tanto nos faltam no dia a dia.
Para finalizar, a artista ainda nos revela: “Fique em silêncio, imóvel e solitário. O mundo rodará em êxtase a seus pés”.
*MAI – Marina Abramović Institute, foi concebido pela artista para ” expandir o acesso a obras imateriais e de longa duração, e criar novas possibilidades de colaboração entre pensadores de todos os campos”.